NÃO HÁ MORTE, SE NÃO HÁ SUJEITO: uma análise dos assassinatos de travestis em Belém
Travestilidade, morte, inquérito
Partimos da compreensão de Butler (2011) sobre o conceito de precariedade das vidas. A autora aduz sobre a forma como nos relacionamos enquanto sujeitos, a maneira como enxergamos o Outro e o que ele representa pra nós. Nós tomamos consciência de nossa própria existência, quando entramos em contato com o outro.
A relação entre nós e o outro se constrói a partir de uma lógica de identificação, como expõe Louro (2000), essa condição de identificação se origina a partir do momento em que eu me identifico enquanto sujeito e percebo o Outro como sendo distinto da minha existência – O Outro não sou eu, sendo assim “a identificação sempre se baseia na diferença que busca superar, e seu propósito é alcançado apenas por meio da reintrodução da diferença que ela alega ter feito desaparecer” (BUTLER, 2011, p.28).
Neste ponto, chegamos na questão central da precariedade das vidas para Butler (2011), a construção normativa da diferença opera produzindo duas formas de violência: uma por meio da oclusão e uma por meio do apagamento da própria representação. Essa primeira forma de poder normativo identifica simbolicamente o outro como inumano, ou seja, encerra a compreensão de humanidade sobre um determinado sujeito, aquele ser não é um ser humano, não está compreendido pelas mesmas normas e direitos que nos protegem, enquanto sujeitos.
Já a segunda construção normativa da diferença é um apagamento radical daquela vida, é como se ela nem ao menos tivesse existido – não é mais uma questão de reconhecer ou não a condição humana de um sujeito, pois simplesmente não há sujeito ali para ser reconhecido. Neste segundo caso, quando se comete um assassinato contra este ser sem vida, não há crime. O Outro, neste caso, existe somente por meio da sua própria exclusão.
Estas vidas que são excluídas da condição de humanidade ou nem são consideradas humanas, que estão expostas a essas violências, que mesmo após a morte continuam a ser recusadas por meio da proibição do luto, estas são vidas precárias.
Acredita-se que é possível extrair da travestilidade estes mesmos caracteres da precarização das vidas, como será explicitado posteriormente no primeiro capítulo. O presente trabalho se propõe a identificar a condição de precariedade das vidas travestis, entendendo-as como vidas que não merecem ser vividas, que são apagadas antes e mesmo após a sua morte em nossa sociedade.
Dentre os vários campos onde essa precarização pode se manifestar, escolheu-se trabalhar com as agências policiais, especificamente a Polícia Civil do Estado do Pará. Tendo em vista, como exposto acima, a baixa produção de trabalhos na esfera policial sobre mortes de travestis.
A desumanização desses sujeitos é uma constante nas estruturas da sociedade, é o que leva aos assassinatos, e a Polícia Civil é o primeiro órgão que tem contato com essas vítimas e seus homicídios. Por isso,o presente trabalho se propõe a pesquisar justamente a forma como essas estruturas de coerção e de exclusão se perpetuam dentro das instituições e agências que compõe a sociedade – tendo como campo as Delegacias – já que estas são as portas de entrada do sistema de justiça, a forma como essas agências realizam seu trabalho pode tanto influenciar, como retratar as condições de exclusão das vidas travestis. Por isso a presente pesquisa, se propõe a analisar:
Em que medida a atuação da polícia civil na investigação dos assassinatos de travestis, em Belém, no ano de 2018, evidencia a precariedade dessas vidas?