Os amigos que desconheço: ficções do caminhar e a guerrilha dos cuidados no Antropoceno
Performance.Caminhar.Calçados.Cuidados.Antropoceno.
Amigos que desconheço é a materialização sensível de um processo de criação artística concebido como performance caminhante. O caminhar em sua qualidade de guerrilha é posto em prática como uma metodologia do cuidado como frente de pensamento em relação à emergência do Antropoceno. Se o Antropoceno, época geológica do homem, o homem tornado força geológica, indica um tempo inexorável de intensificação das catástrofes em todo o planeta, como caminhar entre catástrofes? E o que o caminhar pode nos fazer ver como linha de fuga e deserção em relação ao modo como temos vivido, sobretudo, nas grandes cidades? Será preciso, nesse sentido, aprender a aprender com aquelas populações que desde muito convivem/habitam o “fim do mundo”; povos que, de fato, já experimentaram muitos fins de mundo. Para isso, este processo se pronuncia através dos impactos e das metamorfoses que afetam o performer caminhante em um mundo que rapidamente e violentamente se atropela de novas premissas à vida. O performer se depara com os calçados na rua: esquecidos, abandonados, perdidos, despejados, deixados? Parecem exprimir algo acerca da vida que temos insistido nas cidades. Aparecem de muitos modos sobrepostos, parecem se atribular de múltiplas camadas de experiência. O performer imerge através das imagens renitentes provocadas por estes: decide percolhê-los em seu caminhar. Cria um caminhar para produzir encontros com os calçados na rua. Calçados de quem não sabe quem, mas que sabe com; são seus amigos desconhecidos, pensa. Um carrinho o acompanha, um carrinho que os acolhe. Interessa o ato, a performance de se despir dos calçados e seguir descalço. Porque se põem descalços ou quem se trata é assunto sem chão, importa saber que estão descalços e que assim se foram em direção à outra coisa. Ele leva os calçados consigo para casa e os cuida. Limpa e protege. Faz o zelo como uma medida de conexão entre mundos, cuida dos calçados como a tecer superfícies possíveis para os pés destes que se arriscam descalços. Esse trabalho, neste ínterim ético-estético, se insinua a especular, ficcionalizar e imaginar, através e pela performance, em seu caráter de pesquisa, aberturas de condições e perspectivas sensíveis de fortalecimento e aprendizado que favoreçam uma musculatura física/não física de autodefesa e autocuidado: atos/ritos/armaduras/artefatos/escrituras de e para cuidados, forjados para caminhar ambiências hostis que inaugurem e despertem outros modos de fazer e de existir frente a um mundo radicalmente empobrecido.