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Banca de QUALIFICAÇÃO: SAULO CHRIST CARAVEO DA SILVA

Uma banca de QUALIFICAÇÃO de MESTRADO foi cadastrada pelo programa.
DISCENTE: SAULO CHRIST CARAVEO DA SILVA
DATA: 19/11/2018
HORA: 15:00
LOCAL: PPGARTES
TÍTULO:

A NASCENTE DE UM RIO E OUTROS CURSOS: A GUITARRADA DE MESTRE VIEIRA.

 


PALAVRAS-CHAVES:

Guitarrada, Mestre Vieira, Prática Musical no Pará


PÁGINAS: 90
GRANDE ÁREA: Lingüística, Letras e Artes
ÁREA: Artes
SUBÁREA: Música
RESUMO:

Nasci em uma das datas mais festivas do ano: primeiro de janeiro de 1976, em Belém do Pará. Desde muito pequeno apreciei a música por influência de meu pai, que não exercia a profissão de músico, mas trazia consigo uma musicalidade que transcendia ao ofício de tocar violão. Dentre os diversos discos que meu pai me presenteou recordo de alguns artistas - The Beatles, Chopin, J. S. Bach, Gipsy Kings, Chico Buarque, Elvis Presley, Rolling Stones, e as diversas histórias de sua juventude. Entendo meu pai como minha primeira referência musical.

O bairro da Pedreira, onde cresci e resido até hoje, o bairro do samba e do amor como também é conhecido, tem grande relevância na construção de meu trajeto antropológico e no meu desenvolvimento musical. É um bairro com diversas manifestações culturais, festividades populares, aparelhagens, blocos de carnaval de rua e quadras juninas. Em minha memória guardo nomes como Juventus, Estrelinha, Ouro Negro, casas onde funcionavam as chamadas Sedes, onde aconteciam as festas populares nas quais as aparelhagens tocavam. Lembro-me, ativando memórias de meus oito, dez anos, de adormecer ao som do repertório musical dessas festas, composto em sua grande maioria por Brega, Jovem Guarda, Rock, Carimbó e Guitarradas. Eu era criança e minha casa localiza-se a uns cem a duzentos metros de uma dessas sedes, o Juventus.

Na sede do Juventus funcionava um clube de futebol de salão, o Iris Recreativo Clube, no qual joguei por alguns anos. Lembro que treinávamos no salão de dança e, por muitas vezes, entre as aparelhagens que tocavam nessas festas. Em algumas ocasiões os DJ’s testavam os discos, músicas, mixagens e vinhetas durante nosso treino. Este foi parte de meu percurso neste período e, justamente diante deste e outros contextos, desenvolvi minha musicalidade e minha paixão primeiramente pelo violão e, posteriormente, pela guitarra elétrica.

Os solos de guitarra foram meu objeto de interesse desde o início da minha trajetória musical. Iniciei meu percurso como guitarrista no ano de 1997. Neste período ainda estudava engenharia elétrica na Universidade Federal do Pará. Em 2000 ingressei no curso de Licenciatura em Educação Artística, Habilitação em Música, na Universidade do Estado do Pará. Como guitarrista fui autodidata até 2001, quando motivos pessoais me levaram a São Paulo, cidade na qual residi por quase três anos e onde aprofundei meus estudos em guitarra elétrica.

Neste período pude dar início também às minhas primeiras pesquisas sobre a música brasileira, mais especificamente sobre a música paraense. Lembro-me de nesta época ter pedido a meu pai que me enviasse alguns CD’s de música regional, e como já desenvolvia um trabalho na banda de heavy metal Soledad, iniciei meu porcesso de composição envolvendo música regional paraense e Rock, uma espécie de fusion amazônico, presente em minha musicalidade até hoje.

Posteriormente estudei no Instituto de Guitarra e Tecnologia (IG&T), que faz parte da Escola de Música e Tecnologia (EM&T), considerada a maior escola de música da América Latina. Nela concluí o curso de Linguagem e Estruturação Musical (LEM) e me graduei em guitarra elétrica na especialidade Fusion, gênero musical de origem norte americana, criado a partir da mistura entre os gêneros musicais Rock e Jazz.

Tive a felicidade de estudar com Mozart Mello, considerado um dos grandes guitarristas e professores na história da guitarra brasileira. Mozart abordava profundamente o Jazz, a Música Popular Brasileira (MPB) e a Bossa Nova, além de outros gêneros nacionais como o frevo e o baião. Esta formação musical me possibilitou dar ênfase a aspectos envolvendo a técnica e a harmonia, possibilitando análises profundas de diversos gêneros musicais - Música Erudita, Jazz, Bossa Nova, Choro e Música Popular Brasileira (MPB). Com o tempo ampliei minha percepção para os contextos que envolvem as práticas musicais, em especial na musicalidade desenvolvida em Belém do Pará.

Ressalto a importância do apoio financeiro da CAPES, que me possibilitou a imersão realizada nesta pesquisa, envolvendo a música paraense, a guitarra e contextos culturais, venho desenvolvendo este trabalho, fruto das atividades acadêmicas desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Artes, da Universidade Federal do Pará, entre os anos de 2017 e 2019, cujo foco é o gênero musical guitarrada e seu maior representante, Mestre Vieira.

Sabendo da complexidade em torno da formação da música popular paraense, no que se refere às origens do gênero musical Lambada, hoje conhecida como Guitarrada, e diante de trajetos e percursos de Joaquim de Lima Vieira, considerado o criador do referido gênero musical, acredito que me é preciso julgar capaz para me lançar ao desafio de etnografar Vieira e sua obra em meio a tantos outros que dele estiveram bem mais próximos, desde a nascente deste rio. Porém, ao sentar-me na popa desta canoa e seguir cursos que apenas a intuição[1] sensível (ARNHEIM, 2004) de meu olhar será capaz alcançar terra firme ou afogar-me em encantarias, posso dizer que a primeira remada a lançar-me no percurso deste diverso rio chamado guitarrada é o meio[2]. O meio de mim atravessado por outros meios de outros, aquele meio tom acima, que se afina em meio à pororoca de encantarias sonoras - eu como rio que também sou, o eu-meio como ponto de partida.

As informações, análises, abordagens e reflexões realizadas ao longo desta densa[3] etnografia serão expostas à luz da etnomusicologia. Neste sentido, autores como Blacking (2000), Seeger (2008), Nettl (2005), Merriam (1964) e Béhague (1992) abrem braços de rios rumo às margens seguras no que se refere à contextualização de teorias, suas implicações e aplicações. Assim cheguei a problemática que norteia esta dissertação: seria a prática musical de Vieira tão pujante a ponto de instaurar uma nova poética na musicalidade local, um novo gênero musical e uma nova forma de tocar guitarra na Amazônia e no Mundo, trazendo novos desdobramentos para a conversão semiótica, para a memória, imaginário e para a cultura musical amazônica?

Investigar a prática musical de Mestre Vieira, considerando a instauração de uma nova poética na musicalidade local, um novo gênero musical que remodela novas perspectivas para a prática da guitarra elétrica na Amazônia e no Mundo e a capacidade de trazer novos desdobramentos para a memória, para o imaginário e para a cultura musical amazônica é o objetivo principal desta dissertação.

Os objetivos específicos são: fornecer informações contextualizadas sobre o trajeto antropológico de Mestre Vieira; verificar como se deu a convergência de contextos socioculturais e musicais que levou Vieira à criacionalidade do gênero musical guitarrada; averiguar as transfigurações ocorridas a partir da criação da guitarrada por Mestre Vieira.

Nesta dissertação assumo a hipótese/tese de que Vieira se produziu enquanto músico mediante ato criativo e criacional, e assim agindo, a partir de seu trajeto antropológico, concebeu uma nova poética na musicalidade que se projetou de Barcarena para Belém, para o Pará, para a Amazônia, para o Brasil e para o Mundo, uma vez que, a partir do que chamo de convergências híbrido-transacionais entre contextos culturais, criacionou o gênero musical guitarrada, embrionando novos casos de conversão semiótica no imaginário e na cultura musical amazônica.

Para responder as perguntas propostas, optamos pela etnografia:

A etnografia é uma descrição densa (...). É como tentar ler um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 2008, p. 7).

O surgimento do gênero musical guitarrada relaciona contextos onde, em uma percepção macro, o local e o global misturam aspectos culturais relevantes para a fomentação da musicalidade paraense, que por sua vez, em um recorte micro, miscigenam-se, embrionando novas composições culturais onde a concentração destas misturas assume resultados híbridos e transacionais, ou seja, relações heterogêneas ou homogêneas.

A pesquisa em música requer análises e abordagens sociológicas, além das musicais, em especial no que se refere aos contextos nos quais a criação artística encontra órbita, pois:

A “música” é um sistema modelar primário do pensamento humano e uma parte da infraestrutura da vida humana. O fazer “musical” é um tipo especial de ação social que pode ter importantes conseqüências para outros tipos de ação social. A música não é apenas reflexiva, mas também gerativa, tanto como sistema cultural quanto como capacidade humana. Uma importante tarefa da musicologia é descobrir como as pessoas produzem sentido da “música”, numa variedade de situações sociais e em diferentes contextos culturais, distinguindo entre as capacidades humanas inatas utilizadas pelos indivíduos nesse processo e as convenções sociais que guiam suas ações (BLACKING[4], 2007, p. 201).

Levando em consideração o movimento das guitarradas no Pará, posso dizer que Mestre Vieira, um dos principais personagens da descrição aqui proposta, desenvolve um fazer musical peculiar que trazem consequências que demarcam novas inter-relações e perspectivas culturais para a região amazônica. Nesta direção, construo uma etnografia densa, onde história, cultura, memória, música e oralidade compõem perspectivas relevantes para os resultados deste trabalho.

Segundo Clifford Geertz (2008, p. 4):

Em antropologia ou, de qualquer forma, em antropologia social, o que os praticantes fazem é a etnografia. E é justamente ao compreender o que é a etnografia, ou mais exatamente, o que é a prática da etnografia, é que se pode começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. Devemos frisar, no entanto, que essa não é uma questão de métodos. Segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário, e assim por diante.

A etnografia da música, para Seeger (2008, p. 239), é a escrita sobre as maneiras que as pessoas fazem música. Ela deve estar relacionada à transcrição analítica dos eventos, mais do que simplesmente à transcrição dos sons.

Etnografar o movimento artístico das guitarradas não é simplesmente descrever historicamente fatos em si e, sim, observar contextos e estabelecer relações espaço-temporais entre a literatura existente sobre as guitarradas e os depoimentos de atores relevantes diante de suas memórias, no sentido em que os conceitos aqui propostos possam ser fundamentados adequadamente.

Seguindo pistas obtidas em bibligrafias, entrevistas e conversas informais, creio que a origem da guitarrada está fortemente relacionada ao contexto da Amazônia de meados de 1960. Não que o gênero musical tenha se estabelecido de imediato neste período, mas sim como um locus no espaço-tempo no qual grandes acontecimentos históricos convergem e desembocam em fatores sociais peculiares que embrionaram na sensibilidade e musicalidade de Mestre Vieira o processo que o levou a construção de novas diretrizes estéticas e técnicas no que se refere à forma de tocar guitarra e, gerando novas concepções e transformações culturais na Amazônia. Posso dizer que a convergência de fatos, trajetos e percursos locais e globais geram em Vieira uma espécie de sensibilidade cultural que é responsável pela originalidade de sua produção artística.

A região amazônica, arquétipo repleto de singularidades e de multiplicidades de contextos e saberes nos permite lançar olhares para fenômenos que diante das relações hierárquicas entre as múltiplas culturas na região relevam algumas composições instigantes, misturas e fusões que acabam por ocupar novos lugares diante do imaginário e da cultura local. Neste sentido, diante do avanço do movimento das guitarradas e das relações entre prática musical e sociedade e das possíveis interpretações destas relações, vale destacar que um dos prenúncios que reaqueceriam a prática musical da lambada instrumental está na área acadêmica - Guitarrada: um gênero do Pará[5] (2001), trabalho de conclusão de curso de Pio Lobato, que além de ser pioneiro na área de pesquisa em torno dessa prática musical, resgata e consolida a nova nomenclatura atribuída à lambada - guitarrada.

Posteriormente, foi possível localizar a dissertação de mestrado de Bernardo Thiago Paiva Mesquita, A Guitarrada de Mestre Vieira: a presença da música afro-latino-caribenha em Belém do Pará (2009) e a tese de Darien V. Lamen, Mobilizing Regionalism at Land’s end: popular eletric guitar music and the caribbeanization of the Brazilian Amazon (2011). Em 2009 recebi Darien em minha casa, a convite de meu amigo Marco Aurélio. Na ocasião, Darien Lamen, pesquisador norte americano, buscava informações sobre a música produzida em Belém do Pará, e entrevistou meu pai, Fernando “Gigante” Gomes. A escolha por meu pai se deu pelo fato de ele trabalhar no Ver-O-Peso por muitos anos, por gostar e estar sempre em contato com a música produzida e divulgada na zona portuária de Belém. Até então, eu não imaginava os desdobramentos que esta entrevista tomaria.

Estes três trabalhos, além de similaridades, possuem também algumas abordagens que os diferenciam no que se refere ao mesmo objeto de pesquisa: o gênero musical lambada/guitarrada. Lobato (2001), por ser pioneiro, conta uma história original, dando enfoque à importância e presença das rádios nacionais e transnacionais da época e que antecipa qualquer análise interpretativa relativa ao movimento das guitarradas, além das análises musicais. Com entrevistas realizadas com personagens importantes como os guitarristas Chimbinha, Aldo Sena e o próprio Mestre Vieira, Lobato foi fundamental para trabalhos posteriores. Mesquita (2009) faz uma abordagem historiográfica da considerada Música Popular Paraense (MPP) moderna, na qual está inserida a prática das guitarradas e revela outros veículos importantes responsáveis pelos contextos nos quais repousa a origem do movimento das guitarradas. Além das rádios, Mesquita pontua Belém como parte integrante da Rota de Contrabando Internacional, a Zona do Meretrício e ainda os torneios internacionais de futebol dos quais os clubes paraenses participavam como agentes de grande relevância, no que se refere à interferência de culturas externas na construção da identidade musical paraense. Mesquita também disponibiliza diversas entrevistas, incluindo as realizadas com Mestre Vieira. Lamen (2011) faz levantamentos importantes em relação ao percurso artístico de Mestre Vieira, incluindo o fato de entrevistá-lo também. O trabalho de Lamen teria ainda Pio Lobato como um dos objetos de sua pesquisa, juntamente com Milton Almeida Nascimento. Estes três trabalhos são importantes no que se refere à história de Vieira e contextualizam o tipo de música consumida e produzida em Belém do Pará nos anos de 1960 e 1970 que revelariam novas dimensões e transfigurações culturais e musicais na região amazônica. Mesquita[6] (2009, p. 3) ainda diz que a influência da musicalidade caribenha foi decisiva na formação de vários gêneros musicais no Pará.

A construção da identidade musical no Pará, em especial em Belém, acontece em um período de grandes convergências culturais. Os anos de 1950 e 1960 são importantes para a formação da Música Popular Paraense (MPP), que impulsionados pela globalização, marcariam uma fase de modernização da Amazônia onde a influência da música afro-latino-caribenha, segundo Mesquita (2009), assume grande relevância na fomentação dessa identidade.

Mesquita vislumbra pontos de grande relevância no que se refere à construção da identidade da MPP e de como a música oriunda de outros berços culturais afetariam significamente o processo criativo de Mestre Vieira. A natureza híbrida destas interelações culturais, segundo Mesquita (2009, p. 5), ganha nomenclatura peculiar: RTDC – Rede Transatlântica de Difusão Cultural. Esta rede é formada pelas rádios, sedes, clubes, bares e gafieiras onde aconteciam as festas populares das décadas de 50, 60, 70 na cidade de Belém, além da área portuária, zona do meretrício, os espaços públicos de bairros como: Campina, Guamá, Jurunas e Condor.

Um dos pontos levantados por Mesquita (2009, p. 15-16) é a rota de contrabando na qual Belém estava inserida desde os anos de 1950:

Pode-se afirmar que nas décadas de 50, 60 e talvez até meados de 70, a cidade de Belém fizesse parte da rota de contrabando de dimensão internacional. Durante este período, batizada como a capital brasileira do contrabando, a cidade das mangueiras foi palco de uma das atividades ilegais mais combatidas na época.

O diagnóstico realizado por Mesquita diante da RTDC é facilmente compreendido no sentido que as relaçoes estabelecidas diante dos contextos da época alimentam a ideia de que os espaços supracitados são geridos por pessoas que se inter-relacionam em uma atmosfera peculiarmente cotidiana e comum. A música afro-latina-caribenha chega pela zona portuária e não tão somente pelas rádios clandestinas. Os discos advindos do Caribe, por exemplo, serviam como uma espécie de moeda de troca utilizada pelos marinheiros que frequentavam espaços como a zona do meretrício, sedes, clubes e gafieiras. O contrabando deste tipo de mercadoria aumenta na medida em que o consumo também aumenta. As aparelhagens iriam determinar a força desses cursos.

Não querendo assumir o risco de ser repetitivo em relação ao trabalho de Bernardo Mesquita, o qual considero de grande relevância e uma de minhas principais referências, não somente por ser a primeira pesquisa em nível de pós-graduação do gênero guitarrada, mas por levantar questões importantes que relacionam contextos culturais, musicais, políticos e históricos no que se refere à construção da identidade da música paraense, me proponho a citá-lo, quando necessário, no sentido de melhor referenciar os fatos que contornam e que demarcam o que acredito ser o ponto de convergência espaço-temporal destes contextos sociais geradores da atmosfera cultural necessária para que Mestre Vieira embrione o gênero musical guitarrada.

As leituras, observações e análises me levaram a interpretações pessoais no que se refere à abordagem dos conceitos propostos neste trabalho:

Como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis (o que eu chamaria símbolos, ignorados as utilizações provinciais), a cultura não é poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade (GEERTZ, 2008, p. 10).

Quando falamos do movimento das guitarradas não há como excluí-lo do contexto amazônico, em especial pelo fato de Mestre Vieira ter vivido períodos de grandes convergências e transformações culturais na região. Não obstante, Vieira nasce em Barcarena, cidade ribeirinha que reflete significativamente a realidade local e o crescimento urbano dos anos de 1960 no Mundo. Neste sentido, ao abordar a região amazônica, devemos situar alguns contextos fundamentais no que se refere ao espaço físico, político, simbólico e do imaginário local.

Ao me projetar em travessias entre Belém e Barcarena, onde rio e tempo transacionam-se levando-nos a estados de encantamento profundo, pude reentrar em algumas dimensões da memória. Rememorar é viagem no tempo e tempo representa duração, significa levar e trazer matéria, numa espécie de transporte sensível do imaginário e da construção de identidade. Segundo Assmann (2008, p.116), memória é a faculdade que nos capacita a formar uma consciência da identidade, tanto no nível pessoal quanto no coletivo. A identidade, por sua vez, é relacionada ao tempo. Visitar memórias de antes nos impõe levar obrigatoriamente algo de hoje e trazê-las para o presente, traz também o afetamento em algo para o futuro.

Imaginar no futuro este trabalho é tão inspirador quanto desafiador. Penso agora no antes pré-projeto e percebo no durante existir um tempo flexível diante de nosso trajeto na pós-graduação: um tempo que se dilata e se comprime no sentido em que os atravessamentos decorrentes do envolvimento com o objeto e a teoria[7] (aulas, campo e leituras), e da imersão no rio movente da pesquisa dilatam e comprimem nossa percepção para novos olhares, significações e ressignificações das questões[8] que a orbitam.

A dilatação seria então uma espécie de aumento da amplitude do olhar sensível, enquanto a compressão um refinamento do olhar embrenhado na sensibilidade perceptiva. Esta interrelação entre as dimensões do tempo passado, presente e futuro e seus desdobramentos costumo chamar de o tempo intelecto.

Para responder à questão central deste trabalho realizei o levantamento bibliográfico da literatura sobre o tema proposto e sobre o referencial teórico que fornece suporte e fundamentação para os conceitos abordados nesta pesquisa. Realizei entrevista semiestruturada com Mestre Vieira e outros atores que melhor pudessem contribuir para o desenvolvimento de uma cronologia etnográfica satisfatória. Destaco ainda que além do olhar etnomusicológico e etnográfico, apresento este trabalho de uma forma em que minha intuição e percepção enquanto guitarrista de formação possa guiar o leitor para uma compreensão precisa no que se refere à prática da guitarra elétrica e aos atravessamentos decorrentes de minha imersão neste rio das guitarradas, das relações estabelecidas com Mestre Vieira, sua obra e família.

Entre os anos de 2017 e 2019, diante da imersão etnográfica realizada, pude entrevistar Mestre Vieira e por esta ocasião estabeleci relevante proximidade com seu filho Waldecir Vieira, o qual me convidou para participar da festa de aniversário de oitenta e três (83) anos do mestre. Visitei Barcarena algumas vezes depois disto. Visitei seu arquivo pessoal e o Centro Cultural de Barcarena onde trabalhou nos últimos anos. A convite de Luciana Medeiros, produtora de Vieira, toquei a música Guitarreiro do Mundo em homenagem póstuma ao Mestre na qual seus filhos lançaram o projeto “Os Filhos do Mestre”.

Destaco as entrevistas realizadas com Dejacir Martins Magno, um dos primeiros cantores do conjunto de Vieira, que revelou fatos instigantes de seu percurso junto ao Mestre, realizada em Barcarena, e Bernardo Mesquita, em Manaus, que pôde revisitar memórias e peculiaridades de sua pesquisa. Este envolvimento, além de grande honra, me trouxe o olhar não apenas para o Mestre Vieira, o Rei da Lambada, considerado o criador das Guitarradas do Pará, mas também do ser humano admirado por todos que o cercavam.

O caráter da pesquisa foi qualitativo e o período de abrangência compreendeu os anos de 1934, ano de nascimento de Joaquim de Lima Vieira e 2019, ano de conclusão desta dissertação.

O trabalho apresenta três capítulos. O primeiro descreve o trajeto antropológico de Mestre Vieira, levando em consideração os contextos culturais, geográficos, imaginários e sociais que o envolvem entre os rios memoriais da diversidade diversa. Inserido neste ambiente etnográfico das guitarradas encontra-se o trajeto antropológico e percurso artísitco de Joaquim de Lima Vieira, de uma forma em que não há como separá-los diante das abordagens aqui realizadas.

Para Gilbert Duran[9] (2004, p. 90), o "trajeto antropológico" representa a afirmação na qual o símbolo deve participar de forma indissolúvel para emergir numa espécie de "vaivém" contínuo nas raízes inatas da representação do sapiens e, na outra "ponta", nas várias interpelações do meio cósmico e social. Podemos entender o trajeto antropológico como a apropriação das diversas interferências naturais e sociais que um indivíduo realiza ao longo de seu percurso pessoal, e este, por sua vez, transfigura-se fomentando saberes interconectados ao meio natural e social. Entendo que a densidade de um trajeto antropológico em sua dimensão convergente na ação humana está na relação entre a massa cultural envolvente e o volume das inter-relações dos indivíduos e suas memórias.

Seguindo a intuição para realizá-las, as entrevistas nortearam alguns percursos que nos relevaram detalhes importantes que demarcam a possível nascente do rio das guitarradas. Recorrer à história oral nos possibilitou construir novas memórias a partir de outras memórias subterâneas. Para Halbwachs[10], fatos sociais constroem memórias individuais e coletivas:

Recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer e também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma informação, embora muitas circunstâncias a ele relativas permaneçam obscuras para nós. O primeiro testemunho a que podemos recorrer será sempre o nosso (HALBWACHS, 2006, p. 29).

A trajetória de Mestre Vieira orbita contextos socioculturais intrínsecos localizados no espaço-tempo onde o real e o imaginário miscigenam-se tornando possível a construção de uma rara atmosfera geradora de um fazer artístico incomum.

No segundo capítulo busquei a convergência entre o processo criativo de Vieira e os conceitos de hibridação e transacionalidade. Para Canclini (1989, p. 263) essas novas modalidades de organização da cultura, de hibridação das tradições de classes, etnias e nações requerem outros instrumentos conceituais.

Considerando a complexidade das relações que orbitam contextos locais e globais nos anos de 1950 e 1960, diante do que Canclini (1989) chama de hibridação entra as culturas, posso dizer que o advento do movimento das guitarradas é um fenômeno musical híbrido, um gênero musical que se origina da fusão entre características oriundas de outras culturas musicais e que se consolida a partir da inserção da guitarra elétrica, elemento estrangeiro que interfere e remodela as estruturas musicais estéticas a partir da obra de Mestre Vieira, demarcando, desta forma, importante convergência de fatos sociais que desembocam em resultados culturais e memórias intrinsicamente conectadas neste contexto espaço-temporal. Vale ressaltar que para Gerard Béhague[11] (1992, p. 6), os compositores podem ser indivíduos casuais, especialistas ou ainda grupo de pessoas, e suas composições devem ser aceitáveis para o grupo social em geral.

No caso da construção da identidade musical do gênero musical guitarrada, no que se refere à influência da música afro-latino-caribenha e da absorção da guitarra elétrica e suas características, podemos assumir a origem da guitarrada como um fenômeno musical híbrido. Porém, considerando que as convergências aqui expostas estão ligadas ao espaço-tempo, podemos dizer que além da hibridação que sugere desequilíbrio ou hierarquia no resultado final desta sopreposição cultural, encontramos diante do que temos hoje como identidade musical paraense uma espécie de homogeneização que resulta de uma relação que se equilibra ao longo da transfiguração dos contextos diante do espaço-tempo. A este resultado, considerando estas identidades moventes, chamamos de transacionalidade.

O conceito de transacionalidade, utilizado primeiramente por Antônio Machado[12], que usava o pseudônimo Juan de Mairena, propunha relação equilibrada entre poesia e filosofia, em 1971, e posteriormente foi utilizado por Benedito Nunes[13], em uma publicação no ano de 2000. Entendo a transacionalidade como uma relação justaposta das culturas envolvidas, em um vai e vem equilibrado entre culturas e práticas musicais, uma vez que a música produzida por Vieira estabelece relação transacional com a construção da identidade da Música Popular Paraense moderna. Assim, a origem das guitarradas a partir da obra de Mestre Vieira assume aspectos híbrido-transacionais.

Criar em arte é um ato processual. É necessário envolvimento, reflexões, indagações e contextos: cultura, tempo, espaço, memória, intuição, ideia e prática experimentativa. Nesta direção, levando em consideração a origem das guitarradas no Estado do Pará, posso dizer que Mestre Vieira em algum momento desenvolveu seu próprio processo de composição no que se refere à prática da guitarra elétrica na Amazônia:

A intuição e o intelecto se relacionam com a percepção e o pensamento de uma forma um tanto complexa. A intuição é bem mais definida como uma propriedade particular da percepção, isto é, a sua capacidade de apreender diretamente o efeito de uma interação que ocorre num campo ou situação gestaltista. A intuição é também limitada à percepção, porque, na cognição, só a percepção atua por processo de campo. Desde que, porém, a percepção não está em parte alguma separada do pensamento, a intuição partilha de todo o ato cognitivo, seja este mais caracteristicamente perceptivo ou mais semelhante ao raciocínio (ARNHEIM, 2004, p. 14).

Ainda sobre criação artística, Salles (2008, p. 12) diz que uma memória criadora em ação também deve ser vista nesta perspectiva da mobilidade: não como um local de armazenamento de informações, mas como um processo dinâmico que se modifica com o tempo. Para Bergson (2006, p. 34), Deleuze (1999, p. 3-4) e Duchamp (1957, p. 73), a intuição não é um ato único e a criação é algo necessário solitário e particular ao criador que passa da intenção para a realização por meio de uma cadeia de reações totalmente subjetivas.

Em se tratando de criação musical, podemos refletir sobre possíveis fases do processo: ouvir, pensar, refletir, intuir, idealizar e experimentar. Entendendo também que em decorrência do trajeto antropológico de Mestre Vieira, fortemente ligado ao processo de formação cultural de sua região e da convergência de fatos histórico-sociais que resultaram em uma atmosfera na qual a sua percepção e intuição iriam orbitar, posso dizer que Vieira desenvolve ideias particulares que iriam marcar a identidade da música popular paraense.

No terceiro e último capítulo busco relacionar a transfiguração sofrida por Joaquim de Lima Vieira a partir do conceito de conversão semiótica concebido por João de Jesus Paes Loureiro (2007), no sentido da mudança de significado da representatividade de Mestre Vieira e do imaginário da cultural local.

Segundo Loureiro (2005) a Amazônia é uma diversidade diversa, um universo de multiplicidades de saberes e valores simbólicos onde rios e florestas desenham cenários singulares e embrionam novas significações e perspectivas para a cultura e para a vida cotidiana da região:

O homem vive a remodelar de significações a vida, a fazer emergir sentidos no mundo em um processo de criação e reordenação continuada de símbolos intercorrente com a cultura (...). O homem cria, renova, interfere, transforma, reformula, sumariza ou alarga sua compreensão das coisas, suas idéias, por meio do que vai dando sentido à sua existência (LOUREIRO, 2007, p. 11).

As significações assumem algumas dimensões no contexto das guitarras, Mestre Vieira e a cultura local, uma vez que, antes chamada de lambada, a guitarrada ao assumir nova nomenclatura resignifica-se enquanto patrimônio histórico imaterial no ano de 2011 e redimensiona a prática da guitarra elétrica no Estado do Pará. Joaquim de Lima Vieira transfigura a sua própria significação, uma vez que assume, a partir de sua obra, a posição de Mestre da Cultura.

Para Geertz (2008, p. 4) o conceito de cultura é essencialmente semiótico. Loureiro (2007, p. 35-36) diz que a conversão semiótica significa o quiasmo de mudança de qualidade do signo, na significação de um objeto ou ação, no ato do percurso de mudança de sua localização na cultura, no momento mesmo dessa transfiguração.

Considerando as significações que orbitam a origem da lambada e as atribuições e ressignificações simbólicas e culturais observadas no contexto das guitarradas e Mestre Vieira, diante do exposto por João de Jesus Paes Loureiro (2007), posso dizer que tanto no caso do advento da guitarrada quanto na ascendência de Vieira enquanto Mestre de um notório saber observo casos de conversão semiótica.

O fenômeno das guitarradas assume contextos diversificados no que se refere ao ambiente social, político e cultural, determinando a fusão entre gêneros musicais locais, outros gêneros e contextos demarcados pela hibridação cultural e transacionalidade. Esta nova dimensão cultural da prática musical local, em especial na prática da guitarra elétrica na Região Amazônica, será responsável por experiências sociais que irão marcar definitivamente a identidade, memória, regar novos valores simbólicos e transformar o imaginário coletivo local.



 


MEMBROS DA BANCA:
Presidente - 6327462 - SONIA MARIA MORAES CHADA
Interno - 2124568 - IVONE MARIA XAVIER DE AMORIM ALMEIDA
Externo à Instituição - BERNARDO THIAGO PAIVA MESQUITA
Notícia cadastrada em: 01/11/2018 09:15
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