O FUNDAMENTO RACIAL NA CONSTITUIÇÃO DO SELF: análise crítica em Seyla Benhabib e Sueli Carneiro
universalismo; self; gênero; raça.
O presente trabalho busca analisar a concepção de self que baseia a teoria do universalismo interativo de Seyla Benhabib, usando para tanto a construção filosófica de Sueli Carneiro que aponta a necessidade de se perceber o dispositivo de racialidade como constitutivo essencial do self. O que se percebe no decorrer do estudo é que fazer uma leitura da tradição universalista apenas através do apagamento de gênero, como bem fez Benhabib (2021), provoca um demasiado silenciamento de raça, ignorando, portanto, que na mesma tradição questionada, existe um dispositivo utilizado com, igual ou maior, violência para a exclusão e desumanização de sujeitos. O estudo em questão propõe então que para salvar o projeto do universalismo interativo é urgente e, obrigatória, a correção do silenciamento de raça presente na teoria de Benhabib, considerando que esse modelo de universalismo construído pela autora está atrelado ao modo como ela pensa o self. Nesse ponto, destaca-se que atrelar apenas ao sistema sexo/gênero a formação do self corrige uma única demanda, mas deixa de fora diversas outras que igualmente constituem os sujeitos. Benhabib (2021) expõe que o sistema sexo/gênero é a grade através da qual o self desenvolve uma identidade corporificada. Um modo de ser o corpo e de se viver o corpo. Dessa forma vincula-se a formação do self ao sistema sexo/gênero, atrelando-se a vivência do próprio corpo a esse sistema, além de apontar que não é apenas o indivíduo que está conectado a essa concepção, por ser um sistema, essa também será a grade através da qual sociedades e culturas reproduzem indivíduos corporificados. A tradição universalista, portanto, construiu todo o projeto universalista em cima de um mito, uma ficção, que é a de um self descorporificado, de um self degenerificado. De fato, essa análise é um avanço importante em relação a teoria universalista moderna, perpetuada pela tradição. No entanto, considerar o sistema sexo/gênero como a única grade formativa do self ignora todo o aparato teórico e filosófico que pessoas negras vêm concebendo desde a modernidade, produzindo, inclusive, de maneira contemporânea à própria filósofa, em muitos momentos disputando os mesmos espaços de discussão e interlocução. Daí porque tal silenciamento precisa de correção. O avanço em reivindicar o aspecto generificado, corporificado no sentido de generificar do self, não pode reduzir a própria identidade corporificada exclusivamente a esse sistema, pois não deixa transparecer em que medida a identidade corporificada do self das pessoas negras passa pela experiência de um corpo formado num contexto de racismo. É, por conseguinte, fundamental corrigir a grade através da qual sociedades e culturas reproduzem indivíduos corporificados, compreendendo que ela é plural e não única. Há, assim, na teoria de Seyla Benhabib condições de possibilidade para a sua própria correção, da mesma forma que há uma continuidade na disputa pelo legado do universalismo. Essa é a razão pela qual propomos a análise da filosofia de Sueli Carneiro como ferramenta para a correção apontada, pois o seu estudo, enfaticamente na tese de doutorado intitulada “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser” nos permite compreender como a grade do dispositivo de racialidade opera a constituição do self, ou do ser, no vocabulário usado por Carneiro (2005). Carneiro (2005) compreende que a redução do ser ao seu aspecto ôntico o destitui do ontológico, faz com que perca de vista o seu estatuto humano, onde abriga o compartilhamento com os demais. É uma forma de enclausurar-se no particular. Assim, a redução do ser ao seu aspecto ontológico o destitui da própria realidade, da concretude, daquilo que lhe faz sujeito no mundo. É necessário então, produzir uma dupla permanência no mundo, a partir de dois aspectos constitutivos do ser, que são a um só tempo particular e universal, não havendo sobreposição de um ao outro. Assim, pensar criticamente o universalismo requer mais do que uma análise a respeito do sistema sexo/gênero como constituintes do ser, razão pela qual não é possível passar batido na análise constitutiva da raça ao formular uma crítica a esse sistema. Perpetuar o silenciamento do racismo no modo como se dá a estrutura e a institucionalização da formação subjetiva, impede a transformação. Chama atenção por exemplo o fato de Seyla Benhabib, na obra “Situating the Self: gender, community and postmodernism in contemporary ethics” mencionar o racismo apenas em três rápidas passagens, quais sejam: a) Na página 33, capítulo “In the shadow os Aristotle and Hegel” b) Página 77, capítulo “Modernity, Morality and Ethical life” e c) Página 104, capítulo “Models of Public Space”. Note-se que as três únicas menções são irrisórias e nem mesmo discutem a respeito do racismo, figuram apenas no rol de exemplos dados a respeito de exclusões movidas pelo sistema. Portanto, analisar criticamente a impercepção de gênero na filosofia prática não pode estar desatrelada da análise crítica a respeito da fundamentação da raça na formação dos sujeitos e todas as implicações advindas dessa formação.